Uma segunda chance - 0.3

 CONFUSÃO

Origem 

(sXIII) latim. confusĭo,onis 'ação de juntar, reunir, misturar' 

consultar vocabulário para palavras com *

Não sei quando dormi, desmaiei na cama depois de tomar toda a sopa e ler um pouco do livro. Não consegui pensar muito sobre este ou qualquer outro assunto, pois o sono logo veio. Minhas dores suavizaram e eu me sentia muito mais leve e calmo, a cama era confortável o suficiente para desejar morar ali para sempre, mas batidas na porta me despertaram por completo. Precisava responder, murmurar ou qualquer outra coisa que indicasse vida dentro do cômodo, mas tudo em mim doía. Levantei o tronco do meu corpo e nada mais, abri os olhos lentamente e esperei meu cérebro ajustar meus sentidos. A visita perde a paciência do lado de fora, consigo escutar um alguém irritado, xingando e gritando, provavelmente o garoto de ontem, aquele encharcado de sangue que rejeitou minha permanência.

Inio onis* maledígero*! Primeiro entra aqui, mente e enfeitiça o povo, agora ignora-me e finge que não ouve. Vê isso? Hirak, você irá se arrepender de deixar o idiota ficar. — Satto xinga fervorosamente com sua voz arranhada e sai batendo o pé.

Pensei que havia me livrado de sair da cama por mais algumas horas, mas a porta finalmente se abre, deixando a luz intensa entrar e ofuscar meus olhos. Hirak, o homem enfaixado, entra sem dizer nada — mas com um sorriso no rosto. Anda até a mesa de centro, deixando um pote com algum tipo de líquido fervido com cheiro doce… gengibre?

— Você deveria ter aberto a porta, teria sido um ótimo momento para fazer amizade com o estressadinho. 

— Se eu tivesse aberto a porta… — tusso com dificuldade, cuspindo sangue —, tenho certeza de que teria sido espancado pela criança. — Percebi, de relance, que o sorriso saiu brevemente de seu rosto.

— Ele é parecido com um cão, late o dia inteiro, mas se esconde quando é confrontado — as palavras saem sérias, mas o sorriso e o tom angelical voltam em segundos. — Sei que no momento você está com dificuldades para se recordar da sua vida, além das grandes dores — eu imagino. Mas antes de oficializarmos a sua estadia na cidade de Oky Táva, devemos fazer uma pequena reunião com meu… com o patriarca, o líder do Clã. — Ele hesita. —  Ele manda, controla e organiza tudo que for relacionado ao Clã e à cidade, e isso inclui aceitar ou declinar um novo integrante. — Escuto tudo de boca fechada enquanto tomo o chá tórrido que queima minha língua. — Ele é meio louco, mas não precisa se preocupar, é só não falar nada e…

Este homem, Hirak, não para de falar um segundo sequer; é uma dor de cabeça! Sei de suas boas intenções, mas… que horas são? E ele está aqui, falando. Meus ouvidos se fecham e eu não escuto mais sua voz, é apenas um manequim sem voz agora. Um manequim alto demais, magro demais e tão branco a ponto de arder os olhos. É difícil falar da sua aparência, não conseguia ver muito além de seus olhos pretos e nariz comprido devido às bandagens pelo rosto todo. Continuo observando e espremendo os olhos, como se fosse possível eu enxergar para além dos panos, fico curioso, teorizando sobre o porquê daquela censura. Em alguns segundos a voz dele volta a atazanar meu cérebro e eu me recomponho.

— Conseguiu entender? — balanço a cabeça, mentindo — Ótimo. Te vejo em alguns minutos então. 

Ele saiu e deixou a porta entreaberta, permitindo que o sol entrasse e iluminasse o quarto, por outro lado, minha mente continuava no breu, não sei o que eu deveria ter entendido, nem mesmo para onde devo ir agora. Há muitas dúvidas mais importantes, de qualquer forma, coisas que eu preciso descobrir. Quem eu sou? De onde eu venho? O que aconteceu? O que é o apito vermelho? 

Penso em sair e ver o que há nesse lugar que não seja o quarto extremamente fechado ou o lago em que fui encontrado, mas antes eu pego o apito pequeno e vermelho e coloco em meu bolso. Levarei ele comigo até descobrir o que tudo isso significa.

Quando eu abro a porta, me deparo com uma mistura de cores, mas um completo silêncio ensurdecedor; há verde em toda parte, e o único barulho escutado é de água caindo. Me viro para trás e vejo a porta do meu quarto se fechando, fico surpreso pelo formato impressionante da casa. Das casas, no plural. É uma em cima da outra, mas não parecem muito grandes, é como se todas fossem do mesmo tamanho do quarto em que eu estive. Não vejo pessoas ao meu redor, quase considero aceitar minha insanidade, mas decido caminhar e vasculhar minha memória em busca de pistas daquela conversa com Hirak. Aonde eu deveria ir agora? 

Caminho rápido, porém prestando atenção nos mínimos detalhes por onde passo: ao sair de perto do amontoado de casas, vejo um caminho soterrado de pedras, quase imperceptível, mas decido segui-lo até o final. O barulho de água fica mais alto e o cheiro de terra molhada é intenso, mas se mistura com as flores, deixando o clima suave, um cheiro que, por algum motivo, me acalmava, como se meu cérebro ficasse dormente; eram inúmeras flores brancas espalhadas por ali. Adiante, as flores diminuíram, dando espaço a outras curiosidades: ao longe, uma caverna gigante chamava minha atenção; porém, mais próximo de mim, havia diversas vozes animadas gritando e cantando.

Nah*, aquele ali não é o jovem pokio*? — Antes de ir adiante encontrar os donos das vozes alegres, escuto vozes “invisíveis” nas moitas. — Satto disse sobre ele. É ele, não é?

— Shhh! Vamos embora. — Responde a outra voz.

Pauso meu passo com raiva e pulo nos arbustos para pegar o filha da puta, mas não encontro nada além do chão duro e dores intensas. Não havia ninguém ali, apenas folhas que caíam no chão. Penso novamente na loucura e que talvez ainda esteja delirando pelas infecções dos meus machucados, mas quando olho para cima e vejo dois pares de olhos me encarando profundamente. Definitivamente não eram donos das vozes.

— Nilo…? 

— Se fosse para ficar dormindo, era melhor ter continuado no quarto. 

Satto vai embora na mesma rapidez que apareceu, enquanto Levi segura um riso estúpido, não sei se pelo adolescente idiota ou pelo ruivo desequilibrado no chão — no caso, eu mesmo. Enquanto me levantava, pensei em perguntar sobre as vozes para Levi, mas lembro-me de escutar “Satto disse” vindo das vozes esquisitas, então decido esperar em silêncio até me reencontrar com ele.

Fomos andando em silêncio por entre as árvores até que o barulho da água e dos gritos preenchesse o vazio. Inúmeras pessoas de todas as idades: adolescentes, jovens e adultos se divertiam na cachoeira. Vi duas garotas lutando de espada e alguns jovens treinando com flechas. Era uma mistura de ações, barulhos e pessoas, mas aquilo também me divertia. Caminhamos entre as pessoas, sorrindo, até que percebi que estava sendo observado, mas dessa vez por muitas pessoas. Muitos pares de olhos encarando meu cabelo e julgando minha presença. 

— Eu… — ele me olha e eu hesito — na verdade, eu precisava me encontrar com Hirak, acho que estou atrasado.

— Ah, claro, eu fui convocado para ir te buscar, pois Hirak disse que você poderia se perder por aí. Então vamos cortar caminho para que você não se atrase mais!

— Você foi convocado? Você é tipo um faz-tudo? Visto que me ajudou tantas vezes… — tusso.

— Bom, não tem muitas pessoas dispostas a te guiar no momento… — Ele trava, e vejo que ele rapidamente se arrepende de ter dito o óbvio.

Tento não dar muita bola para o que acham ou deixam de achar, pelo contrário, consigo entendê-los perfeitamente. Sou um estranho — isto é fato — e apenas eu sei o que realmente sei, apenas eu sei da minha consciência limpa. Então eu levanto minha cabeça, sorrio um pouco e continuamos nosso caminho.

Confesso que não prestei muita atenção a por onde estávamos indo, apenas confiei no garoto à minha frente até que virássemos algumas direitas e esquerdas e, finalmente, chegássemos. A casa parecia-me pequena, nada como o que eu esperava de alguém de grande influência política, como algo grandioso. A casinha de madeira era rodeada de plantas e flores, reconheci uma delas: a flor branca da estrada de terra que agora fazia um arco na porta de entrada. Havia uma chaminé um pouco torta e esquisita; muitos vasos de flores coloridas; e algumas vozes que vinham de dentro da pequena moradia. Antes que eu pudesse analisar cada detalhe externo da casa, a porta se abre e vejo o grande homem de rosto coberto novamente. Hirak se aproxima, mas não parece estar com raiva do atraso, nem mesmo parece querer me chutar para longe, na verdade, ele sorri.

Xiäe lën*, Nilo. — Hirak continua sorrindo e me cumprimenta gentilmente, logo depois de dispensar o baixinho “faz-tudo”. — Foi muito difícil achar o caminho?

Ele sabia que eu iria me perder, provavelmente percebeu isso enquanto “conversávamos” no quarto. 

— Tentei pegar a estrada de terra, aquela cheia de flores brancas, mas no meio do caminho me desviei, pois escutei algumas vozes nos arbustos e… — merda.

— Vozes? — Ele arqueia uma sobrancelha, pisca algumas vezes e muda de assunto, como se esse não houvesse importância — As flores brancas são as yoky's, flores soníferas que adormecem o cérebro. São medicinais, então não tem perigo, a menos que você as coma. 

Fiquei olhando para as flores que estavam pelo jardim, pensando em quais segredos essas outras escondiam. Não demorou muito para que o homem abrisse a pequena porta engraçada e me chamasse para entrar. Ando em passos largos, mas antes, olho para o céu azul; não sei que horas são, também não sei que horas acordei, mas com esse grande sol prestes a me derreter, penso que estamos perto do meio-dia. Não vejo a hora de acabar com isso; a dor que eu sinto é latejante e eu daria tudo para estar em repouso ao invés de pedir “a bênção” para algum ‘matusalem’ puro osso. 

A casa parece muito maior por dentro do que por fora, tem uma grande sala, com flores, outras flores e, bom , mais flores. Há uma mesa no centro, com muita comida; vejo torta, bolo e sinto um cheiro forte do chá fumegante na chaleira. As paredes são brancas e têm algumas prateleiras cheias de livros empilhados. Hirak continua andando pelo cômodo e eu o sigo, tentando não me distrair. Ao atravessar a porta da sala de jantar, vejo uma grandiosa bagunça na sala de estar: há muitos livros pelo chão, algumas espadas de madeira, farelos para todo lado, duas crianças e um senhor que, para minha surpresa, não parecia o velho que havia imaginado. 

O senhor tinha um longo cabelo grisalho, com algumas mechas mais esbranquiçadas — mas não totalmente. Era alto e magro, não tanto quanto o ‘manequim’ que estava atrás de mim, mas o suficiente para que eu tivesse que levantar um pouco o olhar. Os olhos eram castanhos e a pele morena, um pouco queimada pelo sol. Ele estava concentrado no tabuleiro à sua frente, enquanto disputava uma grande batalha de peças com uma das crianças. O jovem usava grandes óculos quadrados, era negro e seu cabelo era trançado até o ombro. Não parecia ter mais de 12 anos. A outra criança, por outro lado, era uma garotinha que corria pela sala inteira, totalmente alheia ao jogo. O cabelo era curto e branco, assim como sua pele, e seus olhos eram quase violetas. Parecia muito frágil, mas também muito atentada. Era pequena e gordinha, provavelmente a dona dos farelos.

Fico esperando alguém falar alguma coisa, mas nada acontece; também não sei se eu devo iniciar a conversa, mas quando eu olho para trás, Hirak faz um gesto como se diria “silêncio”, então decido apenas esperar a boa vontade, enquanto observo um pequeno relógio sob uma estante. O relógio tem, pelo menos, três tons de marrom, mas ainda bem escuro e esquisito; tem muitos desenhos e objetos pendurados, fazendo com que seja uma arte muito complicada e enjoativa de se ver. Os ponteiros são longos e de ferro, com um formato irregular, e no centro do relógio há um pequenino espelho, algo tão irrelevante em comparação aos demais adornos, mas meus olhos se fixaram naquele espelho e em meu reflexo que se invertia. Em um piscar de olhos eu estava novamente no escuro, como se houvesse levado uma pancada na cabeça. 

Aos poucos o escuro se esvai, e mobílias tomam forma ao meu redor, mas eu já não estava mais na pequena casa bagunçada. Eu não conseguia abrir a boca, não podia pedir ajuda, nem mesmo gritar um “Olá”. Minhas pernas também não funcionam, meu corpo inteiro estava travado no lugar. Minha cabeça está uma bagunça, meu coração palpita rápido demais e eu sinto que estou perdendo o ar igual à noite anterior quando me afogava. 

Eu escuto risadas distorcidas e algumas palavras que não compreendo bem; é assustador. Pisco uma, duas e três vezes, e então alguém surge na minha frente. Usava um cordão com um ‘pingente’ familiar. O apito vermelho. Não reconheci quem estava parado, era uma criança, mas definitivamente não era eu. Ele se move lentamente para pegar o apito e assoprar, soltando um zumbido tão forte que tive a sensação de cair, e então eu voltei. 

— Por Dewi, ganhou de novo? — Diz o velho, enquanto a criança saltitava feliz pela vitória. — Então é você — ele se vira —, o pokió que todos estão comentando por aí?

Eu travo, sem saber o que responder, quer dizer, sim, aparentemente sou um invasor filho da puta que está botando medo em todos, mas o olhar dele me intimida. Era como se ele estivesse lendo minha mente, avaliando meu corpo e alma. Eu abro a boca por um segundo, mas Hirak se coloca na minha frente, como se estivesse me impedindo de falar alguma besteira — o que eu provavelmente faria. 

— Pai, este é Nilo — o senhor nos olha, com as sobrancelhas arqueadas — ele foi resgatado na noite anterior, com alguns ferimentos e… — ele me olha — perda de memória total. 

— Nilo? Como o walia? — Grande ousadia colocar um nome como este em alguém que não conhecemos. 

— O nome, bom, é pelo rio…

— O nome que me foi dado é referente a alguém importante, imagino. Mas eu não sou um walia*, não pretendo ser; agradeço por me darem uma identidade e isto não tem nada a ver com ousadia. — Digo engasgando com o sangue que sobe na garganta, tento engolir e não tossir neste momento e isso quase me faz vomitar. — Fui salvo por vários moradores daqui e estou profundamente agradecido, mas por fav… — minha voz falha — por favor, não me acusem.

O ancião me olha novamente de cima a baixo, me ignorando por completo e voltando a falar com o homem ao meu lado. 

— Hirak, meu filho, já comeu algo hoje? Fiz ótimos bolinhos de morango para Jud e Mio, fará bem a você. 

Ele passou por mim lentamente e foi para a cozinha, junto com Hirak. Pensei em segui-los, mas quando eu estava prestes a passar pela porta, ela se fechou com um baque bem na minha cara. Não soube como reagir, estava incrédulo, indignado, na verdade. A situação era um saco e eu dependo apenas do velho capenga para ter um teto e comida. 

Era melhor estar morto. O pensamento chega rapidamente, junto com a dor no meu ferimento e um mal-estar; estou tonto, como se estivessem batendo em meu cérebro. Ouço vários gritos e meu ouvido zombe até começar a sangrar. Eu estava sendo castigado. 

— Você não deveria pensar em coisas como essas. — Me assusto ao escutar a voz na minha cabeça tão claramente, mas me assusto ainda mais quando olho e a garotinha de olhos violetas está me encarando fixamente. Aquilo era ela?

— Ela só fala telepaticamente — diz o outro jovem do outro lado da sala — e lê pensamentos de morte. Principalmente se você for fraco mentalmente. Pensou em morrer, não é? Se você desejar demais, a deusa pode realizar.

— Calem a boca — digo num sussurro — e diz para essa daí sair da minha cabeça. — Me dirijo ao rapaz. 

— Ela não é surda, seu idiota, apenas prefere não gastar energia falando com estúpidos. — Eu reviro os olhos — Você está curioso, não é? Para saber o que estão falando. Ei, não revire os olhos de novo, eu posso te ajudar. 

Pela primeira vez, desde que cheguei aqui, senti um pingo de ânimo. Eu olho para ele, um garotinho de olhos grandes por conta dos óculos, mas com um sorriso maquiavélico, pronto para aprontar alguma travessura. Ele não espera uma resposta, apenas vai andando para o outro cômodo e eu o sigo. Ao atravessar a porta, percebo que estamos no “mesmo cômodo”, mas com mais portas. Era idêntico, mas mais escuro e… menor. O pequeno jio abriu outra porta e eu continuei andando atrás dele, indo para a mesma que ficava cada vez mais escura e pequena. Eu já estava sem paciência, estava achando tudo uma grande babaquice e perda de tempo. Até que a criança finalmente abre uma sala com um armário no centro. 

— Vamos — diz ele entrando. — E faça silêncio.

Eu entro dentro do armário e, de repente, escuto vozes. Hirak e o idoso conversam e eu posso ouvir tudo claramente e, pior, consigo vê-los entre as frestas do móvel. Ao redor eu reconheço, estávamos na cozinha… como? Eu olho para o garoto, que está ajeitando os grandes óculos enquanto sorri, satisfeito. Eu não compreendo esse lugar, não compreendo essas pessoas; não sei se sinto medo ou curiosidade. Meus pensamentos são interrompidos quando o garoto me cutuca no ombro, chamando minha atenção. 

— Como você pôde ser tão irresponsável? Aquele garoto é um completo desconhecido, não sabemos nada sobre ele! Você, meu filho, tão inteligente, está tomando uma decisão tão perigosa. Estamos sempre em pé de guerra, você sabe, o que mais pode aparecer são milhares de pokios! Como faremos se isso acontecer? Acolheremos todos? — O velho sussurra.

— Mas você me acolheu — diz Hirak calmamente — você também foi irresponsável, e hoje eu sou o mais leal ao clã, não sou?

— É diferente, Hirak, eu vejo nos olhos dele que… — nesse momento, uma tosse se força a sair, minha garganta se fecha e eu preciso respirar fundo para não me entregar, mas ele percebe que algo está errado. Hirak olha para o móvel e eu acho que ele percebe que estamos ali. 

— Wógen! — Ele chama, e o velho ‘Wógen’ se vira — Pai, você sabe que eu estou a par de tudo sobre a vila e fora dela. Não sinto que ele seja um espião, ele não é do clã vermelho. Eu vou me responsabilizar — ele pausa — por tudo.

Por fim, não consigo segurar minha tosse, que sai como um foguete. O menino me olha assustado e me puxa com força, bem no momento em que Wógen abriu o armário, mas não estávamos mais ali. Fui puxado às pressas e voltamos ao cômodo original em milésimos de segundo, bem na hora em que Hirak abre a porta e me chama para sair.

— Ei, ruivo! — Disse o garoto num tom animado — Prazer em te conhecer.

Penso em apenas sair rapidamente, mas ele havia me ajudado, então olho para trás e sorrio para ele e isso basta. Eu e Hirak andamos lado a lado e passamos por Wógen, que não olha para nenhum de nós e fecha a porta. Antes que nos afastássemos, eu olho para a casa e faço uma careta. O que caralhos aconteceu ali? A casa tão pequena se tornou infinita, tive lapsos de memória, tive meus pensamentos lidos e… meu Deus, esse lugar só tem gente perturbada. 

— Você ganhou uma licença provisória dele, então pode ficar e mostrar seu valor até ser permanente. 

— Como? 

— Trabalhando, é claro. Conhecendo pessoas, aprendendo a história e… você não parece muito contente. — Ele para. 

— Não é isso — nitidamente, não há como ficar contente enquanto escuto esse cara falar, não suporto que falem demais, mas não digo isso em voz alta. — Estou apenas com fome e algumas dores. Me sinto fraco. 

Ele me olha, respira fundo e balança a cabeça, antes de tirar um frasco do bolso e me entregá-lo. Era um frasco pequeno de vidro, com algum tipo de líquido azul claro dentro. Sem entender exatamente o que aquilo significava, olhei para Hirak, mas ele já estava andando novamente, então decido abrir e tomar o estranho líquido que apresentava diversos gostos à medida que eu ia tomando: canela, morango, cereja e… terra. Por um instante penso em vomitar tudo, mas respiro fundo e volto a andar até chegar em Hirak, que ia em silêncio. Meu estômago estava se revirando, como se eu houvesse engolido um bicho e ele estivesse limpando tudo — ou bagunçando. 

— Pode vomitar agora. — Sem esperar, despejo tudo no meio das folhas, a sensação era horrível e o gosto de sangue se tornou o menor dos problemas. — Quando acabar, vá reto e algum dos garotos estará te esperando para levá-lo à praça, para comer. 

Quando olho para cima, ela não está mais lá, então me levanto e começo a andar reto — na medida do possível. Dessa vez não reparo na paisagem, nem nas flores, apenas ando o mais rápido possível, até que vejo três pessoas discutindo um pouco mais à frente. O trio parada dura. Mi-la era uma garota morena e alta, parecia atlética e forte, com cabelos exageradamente grandes e olhos redondos; Levi não me parecia diferente de hoje cedo, com exceção dos cabelos pretos que agora estavam amarrados da forma mais bagunçada possível; ele carregava consigo um arco e uma bolsa com várias flechas. Satto, por outro lado, parecia muito diferente, provavelmente porque ele estava encharcado de sangue e ódio na noite passada. 

— Nah, aí está ele, já podemos ir? 

 Agora, com menos sangue no rosto, via-se apenas um pré-adolescente fantasiado de adulto.

Jio*, Nilo! — grita a garota muito feliz quando me aproximo — bom demais te ver em pé! 

Levi não diz nada, mas percebe que não pareço bem e salta para o meu lado, para que eu me apoie em seu ombro. Parecia um bêbado, um louco, e lá estava eu novamente andando apoiado em alguém, mas o garoto ao meu lado apenas sorria, provavelmente já sabia do remédio — veneno — que eu havia tomado. 

Satto me olhava torto, com desprezo total e Mi-la, como sua irmã, repreendeu-o inúmeras vezes enquanto andávamos pela trilha, até que, finalmente, chegamos. No mesmo instante o enjoo passou, como se fosse mágico. Havia uma mistura de cheiros no ambiente, eram tantos que eu nem sabia diferenciar cada coisa; Levi me puxava, enquanto os outros dois corriam na frente até entrarem num grande casarão de madeira. Quando entrei, entendi que o cheiro era de lá; as grandes mesas estavam postas com várias comidas diferentes. As pessoas me olhavam, mas eu estava pouco me fodendo naquele momento. Esqueci de todas as dores, frustrações e memórias, pois tudo que eu quero nesse momento é comer toda carne daquele caldeirão. 

Sentei-me no primeiro assento vazio e, sem nem pensar duas vezes, peguei um prato para encher; Levi não ficou para trás, mas seu prato continha apenas uma colherzinha de cada coisa, diferente do meu. Confesso que pensei muito se estava exagerando, mas Satto estava prestes a encher uma bacia de comida, então deixei de me importar. 

Enquanto comia, analisava a casa em que eu estava: era grande, tinha muitas pessoas comendo e rindo, se divertindo muito. Não havia distinção, nem padrão; todos estavam juntos: adultos, crianças, homens, mulheres, idosos… pude reconhecer o velho Wogen e os pirralhos juntos numa mesma grande mesa, sem exclusão. Eu sabia que os olhares direcionados a mim eram por outro motivo, mas queria que me olhassem como um igual, da mesma forma que estavam fazendo entre si. O que eu estou pensando?

Termino de comer e penso em me retirar, sair para bem longe daquilo tudo. Por algum motivo aquela alegria não me contagiava, essa ideia de família linda não me agrada. Não quero pensar demais, mas meu cérebro me sabota, mesmo que em público. Quando viro para trás, vejo Hirak, que acena de longe do outro lado do salão. O grande manequim pálido e sorridente. Quando sinto que não vou aguentar mais, Mio, o garoto de hoje, e Jud, sua irmã, aparecem como assombração.

— Vamos, panaca! Aqui é muito quente e tio Wogen quer conversar com você lá fora.

Eu olho de relance para Levi, que também se levanta, junto com Satto e Mi-la, como se estivessem esperando que isso fosse acontecer. O sol estava se pondo e andamos todos em fila para fora da casa, em silêncio, em direção ao lago. No mesmo instante eu paralisei, era o lago em que eu havia sido encontrado. Quando eu quase morri.

— Suponho que ainda não tenha lido sobre o lago de cristal, correto? — diz Wogen, enquanto entrava em um dos barcos. 

— Claro que não leu, tio. É um pokió, ele sabe a história. Não mandariam alguém burro para espionar o clã… 

Satto não conseguiu terminar de falar antes que eu o empurrasse, fazendo-o cair no chão.

— Vai se foder — pauso — criança.

Neste momento, Satto se enche de raiva, do mesmo jeito que eu imaginei que ele ficaria. Ele levanta para tentar me bater, enquanto grita xingamentos aleatórios pelos ares, mas Hirak e Levi o seguram com força. Por alguns segundos, imaginei que tivesse arrasado, calei a boca do idiota que me cercava, mas fui surpreendido com um tapa no rosto que estralou numa força absurda. 

— Eu sou gentil, mas não idiota, Nilo — Mi-la me encarava — nunca mais encoste um dedo nele. 

— Eu não encostaria se ele parasse de me acusar — encaro a garota.

Após ouvir isso, Mi-la não demora até chegar à água e virar o barco em que seu irmão estava, fazendo-o cair. 

— Agora que as crianças pararam de brigar, podemos fazer isso logo? Nem Jud ou Mio brigam desse jeito — gritava ela.

Sem esperar muito, entrei num dos barcos, com Levi, Hirak e Mi-la, enquanto no outro barco estavam Wogen, Mio, Jud e o descontrolado; os barcos, no entanto, não tinham remos. Quando olhei para o outro barco, vi Satto ir para o final e afundar sua mão na água, até que o barco começasse a andar. Achei que estivesse vendo coisas, mas senti o nosso barco balançar e se movimentar, seguindo logo atrás do outro. Não era a primeira maluquice que acontecia no dia. Na verdade, nenhum dos dois dias havia sido normal.

— Surpreso, Nilo? — perguntava Hirak, com um desejo de curiosidade na voz, ao me ver com os olhos arregalados.

— O lago de cristal, Nilo — começa Wogen, enquanto aponta o dedo mais para frente — você chegou na hora certa, o jasymi reheta* é o melhor momento para vê-lo…

O lago, que até agora tinha apenas água, começa a revelar vários pontos de cristais brilhantes. Navegamos por entre as pedras preciosas, até entrarmos em uma caverna muito mais brilhante. Era rodeada de cristais, mas havia apenas outra abertura além da pequena entrada, que era em cima, onde dava para ver a lua surgindo. 

— A gruta Gidan Wata.


VOCABULÁRIO

 Inio onis: Aquele monstro maldito 

maledígero: Aquele cuja presença traz maldição ou má influência persistente

Xiäe lën: expressão "Seja bem-vindo"

jasymi reheta: estação criada para o mundo: "Estação dos cristais"


RELEMBRANDO

Nah: Ei

Pokio: Invasor

Jio: rapaz

Walia: guerreiro




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