Uma segunda chance - 0.1
INÍCIO
Origem
(a1727) lat. initĭum,ĭi 'começo, princípio, estreia, (pl.) nascimento, princípios (de uma ciência), mistérios, objetos usados nos mistérios, sacrifícios, cultos religiosos, auspícios'
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Frio. Estou com frio.
Me sinto flutuando no vazio, não consigo pisar no chão, não consigo tocar em nada. Apenas posso sentir uma falta de ar e abro os olhos com dificuldade. Me arrependo, é claro, pois meus olhos ardem e demoram a focar. É escuro e molhado. Estou em algum lugar e estou me afogando. Resolvo olhar para cima e enxergo um brilho, deve ser a lua me dando boas-vindas ou um adeus, não sei dizer.
Queria estar morto, talvez me afogar não seja tão ruim afinal. Não sei como cheguei aqui, me lembro de estar em meu quarto. Que quarto? Onde eu estava?
Eu morri, tenho certeza disso, mas não me lembro de mais nada. E realmente não importa, eu estou indo novamente. Sem arrependimentos, todos os meus problemas vão sumir, finalmente. Que problemas?
Minha mente está confusa e eu sinto a água me levar embora, estou sufocando e isso dói. Talvez eu não queira isso. Talvez eu esteja arrependido. Eu tento nadar para cima, sem sucesso. Não sei nadar. Alguém deveria ter me ensinado a nadar. Quem?
Em questão de segundos, eu estou na superfície, mas não por mérito meu. Há um barco. Um grupo de garotos estranhos me olham como se eu fosse um bicho. Eu queria ser um bicho; assim, me pouparia de viver como um fracassado.
Um garoto me segura e me empurra para dentro do barco. Suas roupas estão molhadas… Um grupo cheio. Eles me salvaram. Mas por quê?
Eu escuto as vozes atrapalhadas e sufocadas por um zumbido no ouvido, algumas frases saem inteiras e são perguntas.
“Quem é você?” Eu não sei.
“Por que você estava ali?” Eu não sei.
“Da onde vem esse sangue? Porra, Levi ele está sangrando!”
Com essa pergunta eu começo a sentir a dor latejando no meu abdome. Coloco a mão onde dói e sinto uma cicatriz aberta, jorrando sangue. Uma memória surge como um flash e eu me sinto zonzo, mas antes de desmaiar eu escuto os garotos gritando por ajuda, mas talvez não haja uma segunda chance para mim.
Por favor, apenas parem.
Eu estava triste. Mais que isso, na verdade, eu estava em uma situação de merda. A pior de todas que já tive o desprazer de vivenciar. Me afundei em uma depressão, mas não lembro o motivo. É um sonho ou uma lembrança. Estou no vazio novamente, mas dessa vez eu sou o telespectador de mim mesmo. Um surto, remédios, um pedaço de vidro. Suicídio. Rasguei meu corpo, meus pulsos e caí no chão; esperei a morte chegar, mas o que aconteceu em seguida foi um apagão e então eu acordei.
Quando eu abro os olhos, sou surpreendido com várias pessoas me olhando. Dezenas de olhos curiosos e irritantes, alturas diversas, várias idades e aparências: jovens, crianças, meninas, meninos, adultos. Todos me olhando.
Há um grande grupo no canto do quarto, todos com olhares assustados e traumatizados. Um garoto estava encharcado de sangue, mas era o único com semblante firme e sério, tentava passar uma imagem de homem, mesmo que fosse jovem demais para isso. Ao meu lado havia uma moça, não muito mais velha que os garotos no canto, mas se vestia como uma adulta. Ela estava de olhos fechados, enquanto falava coisas emboladas e incompreensíveis. Demorei um pouco para abrir completamente os olhos, mas quando isso aconteceu, a garota abriu os dela também e sorriu.
— Bem vindo de volta, jio*
Minha cabeça doía, mas nada supera a dor no meu corpo, como se eu tivesse sido atropelado por elefantes e picado por uma cobra venenosa. Minha garganta estava seca e minha barriga roncava, me sentia um trapo fedido e surrupiado. Algumas das pessoas ali conseguiam disfarçar bem, mas outras deixavam escancarado que o cheiro que pairava no ar não era bom. Um homem com o rosto coberto por ataduras desvia o olhar e conversa baixinho com a moça ao meu lado, até se direcionar para mim novamente, mas ainda sem falar comigo.
— Ótimo, ele acordou. E vocês, bando de curiosos, podem sair da sala. Menos vocês, Mi-la, Satto e Levi. — diz ele apontando para cada um dos três.
Vários garotos saíram da sala enquanto cochichavam e tentavam dar algumas espiadinhas, mas foram logo expulsos por um rapaz baixo, extremamente pálido e com muitas cicatrizes no braço, com cabelos pretos e longos até o ombro. E então, apenas cinco pessoas na sala, se entreolhando e sem saber exatamente o que dizer.
— Jio, você consegue me entender? — A garota me pergunta, com um tom de voz estranho e alto como se eu fosse… sei lá, um bicho.
— Mi-la, deixe o rapaz respirar e não fale assim com ele. Fica parecendo uma tonta — disse o rapaz de cabelos pretos.
— Disse a imbecilidade em pessoa…
— Ok, já chega, vocês dois! — suspira — Peço desculpas pelos outros jovens… Me chamo Hirak, vice-chefe do clã. Pode me dizer seu nome?
O homem de ataduras — quero dizer, Hirak — possui uma voz delicada e baixa, me deixa confortável, ou menos ansioso… difícil dizer numa situação como esta. Eu respiro fundo, encho meus pulmões e abro a boca para dar uma resposta.
— Eu — minha voz falha, minha garganta arranha e o tom da minha voz é esquisito — não sei…
— Não sabe? Porra, você não sabe seu próprio nome??? — pergunta
— Levi, você é realmente tão ingênuo assim? — a voz do garoto encharcado de sangue soa pela primeira vez — é óbvio que ele está mentindo! Inio a pokio*! Um mentiroso de merda… como não se lembra do próprio nome? Como você apareceu DO NADA no lago? — grita ele, olhando para mim.
Não sei o que pensam, não sei por que me acham mentiroso e também não entendo o que falam. Não sei de porra nenhuma e minha cabeça está uma bagunça, tudo roda e o enjoo é forte. Eu poderia calar a boca de todo mundo apenas com meu vômito nesta sala minúscula.
— Eu realmente não sei — digo engasgando de ansiedade, sentindo uma falta de ar absurda.
Tudo piora quando eu continuo tentando falar e ele avança para cima de mim, coberto de sangue e ódio. Porém, o homem — Hirak — interveio, segurando-o e falando algumas coisas em um idioma que eu não compreendia. Eu sentia raiva, medo, tristeza e dor. Todas as sensações juntas e emboladas no meu estômago. Não sei o que o homem havia dito ao garoto mais novo, mas conseguiu acalmá-lo.
— Peço desculpas pelo Satto… e pelos dois bobos ali — aponta para Levi e Mi-la — eu acredito em você. Teve ferimentos graves, sangrou muito e quase morreu afogado, portanto, é entendível que você não se lembre de muitas coisas. Mas precisamos te chamar de alguma coisa, o que acha?
Eu aceno com a cabeça e logo depois Satto sai do quarto com um semblante sério e desgostoso. O restante dos membros no quarto se entreolharam e respiraram fundo antes de Mi-la falar novamente e sair do quarto:
— Satto é meu irmão mais novo… ma jijio*, ele tem apenas 14 anos e é muito preocupado com o bem-estar da vila, então não leve isso para o pessoal. — Eu murmuro um “tudo bem” engasgado e ela sorri para mim, antes de se levantar e ir embora.
— Bom, hoje à noite está agitada, hein, Levi? — Hirak pigarreia — Jio, as apresentações não foram tão boas como planejado, mas isso se deve ao péssimo momento em que a nossa vila se encontra… claro que Levi e alguns outros irão te explicar tudo amanhã, então não se preocupe. — Diz ele olhando para Levi e para mim — Inclusive, foi ele quem o salvou.
Eu olho surpreso para ele e percebo que suas roupas ainda estão molhadas; eu sorrio levemente — mas genuinamente — para ele e agradeço.
— Não me arrependo de tê-lo salvado! Dizem que eu sou ingênuo, mas eu não sou idiota, e eu sei que você é inofensivo… só para constar — sorri. — Ah! Hirak, sobre o nome, eu pensei em uma homenagem às entidades da água, sabe, até ele se lembrar.
— Bem pensado. O rio em que ele foi encontrado foi onde Banyu concebeu seu filho, Nilo, um ótimo walia*, o segundo melhor de quem já ouvi falar. — suspira — E então, o que acha? — pergunta.
— Eu gost— começo a tossir — gostei muito. — digo por fim, ainda tossindo sangue.
Os dois homens no quarto sorriem, mesmo que preocupados com a atual situação, que realmente não é nada boa. Hirak se vira e pega um cesto com algumas roupas, entregando-as para mim enquanto me indica a cabine com uma banheira de água mais ou menos quente.
— Então, é um prazer, Nilo. Você pode ficar por aqui e descansar. — Eu aceno com a cabeça.
Levi estava saindo do quarto, quando de repente se lembra de algo e volta até mim.
— Esqueci de lhe entregar isso, estava com você quando te resgatei… — ele coloca um objeto em minha mão. — Até mais, Nilo.
Os dois saem do quarto, me deixando finalmente sozinho, com um pequeno objeto em mãos… O que é isso? Um flash de memória surge, me deixando tonto… algumas palavras soltas, uma voz, uma risada. Que porra é essa?
“[...] assopre isso quando precisar de ajuda.”
Um apito vermelho.
O banho que tomei parecia mágico. Talvez isso seja porque eu estava ferrado, nojento, molhado, fodido e péssimo, mas, de alguma forma, aquilo me renovou. Meu corpo ainda doía, é claro, mas pelo menos eu não estava sangrando tanto como antes. Agora, depois de ter tomado o melhor banho que eu poderia pedir, consigo analisar melhor o quarto em que estou, que, por sinal, é pequeno, mas é o suficiente. As cores das paredes e elementos do quarto variam entre bege, azul claro e branco, dando uma sensação de paz. A cama em que eu repousava há pouco tempo está extremamente suja, e eu posso ver resquícios de sangue por ali.
A cabine em que tomei banho nada mais era do que uma cortina de bambu que cobria uma caixa de madeira cheia de água. Simples, mas necessária.
No outro extremo do quarto havia um grande espelho, com bordas desenhadas em dourado e azul e uma peônia rosa no topo da moldura. Me analiso, desconfiado de mim mesmo, observo cada detalhe do meu corpo e do meu rosto. Meu cabelo é longo e muito laranja, uma cor chamativa e específica; ele segue até abaixo do ombro e é meio ondulado. Eu não sou baixo, tampouco sou alto, creio que sou alguma coisa. Meu corpo é tão magro que tenho pena de mim mesmo, sou tão branco que pareço doente, um pálido ou amarelado anêmico. Sou adornado de sardas, que são tantas que chegam a ser impossíveis de se contar. São tantos defeitos que vejo em mim mesmo… as cicatrizes em demasia, a magreza que deixa nítido que estou doente, a cor de pele nada saudável e o cabelo ressecado. Mas uma única coisa me deixou satisfeito: meus olhos. Olhos tão verdes que pareciam frutas tóxicas, mas muito bonitos e admiráveis. Deixo de me olhar e penso em como eu chamo a atenção com todas essas cores vibrantes e jeito desengonçado.
Tento deixar tudo isso de lado e finalmente ponho as roupas que me deixaram. Os panos eram macios, parecia que estava segurando o ar, apenas o ar. Nenhum peso, nenhum desconforto. Estava revestido de nuvens fofas e tranquilizantes. Vesti uma calça bege, uma bota preta e uma camisa transpassada azul-claro, com uma outra peônia bordada. Tentei arrumar meus cabelos o máximo que pude e respirei fundo enquanto me olhava no espelho novamente e tentava ensaiar alguma coisa com a voz rouca e áspera.
— Boa noite, eu sou o — a tosse histérica atrapalha minha voz e o sangue que sai me preocupa.
— Nilo? — Escuto uma batida na porta — Diané wu* — Era novamente Levi, entrando com um prato em uma mão e um livro em outra sem esperar resposta.
Me forço a não olhar muito para os olhos negros e tento manter uma imagem tranquila, tentando disfarçar a dor do meu corpo e o sangue em minha boca, mas antes de pronunciar qualquer coisa a ele, tusso novamente. Uma tosse carregada de sangue e a sensação de alguém espremendo meus órgãos chegam e eu não consigo mais fingir.
— A situação está bem feia aqui, hein? — suspira — Te trouxe sopa e algumas outras coisas para comer… Ah! E também lhe trouxe isto — exclama Levi, me entregando o livro de capa vermelha — você pode ler quando estiver menos cansado, infelizmente eu estou sempre cheio de tarefas a cumprir, então queria que você conhecesse um pouco do nosso clã, caso esteja interessado, é claro!
— Estou, sim. — respondo com dificuldade — História?
— Sim, a história de basicamente tudo, pelo menos do que sabemos — ri — você diz que não se lembra de nada, então eu e algumas pessoas decidimos que, já que vai ficar por aqui, deveria ao menos conhecer a nossa história.
O livro era grande, tanto em páginas como em comprimento, era vermelho-escuro e havia palavras grafadas na capa, de alguma forma eu compreendia o que estava escrito, mas não entendia o significado.
— Lienôe o´lawa*. O livro d'água. A nossa história foi escrita por uma grande mulher, a deusa da água, Dewi Udan. Ela foi imensamente importante para nossa vila, para o nosso clã e para as nossas vidas. Abra as últimas páginas — pede ele. Eu obedeço, folheio as últimas páginas, que estão todas… em branco? — A deusa escreve os novos e velhos acontecimentos importantes. Hoje as páginas estão em branco, mas em algum momento algo estará escrito. Algo de grande importância.
Perco a noção do tempo analisando o livro, com suas páginas confusas e complexas; me perco nos pensamentos, nas dúvidas e curiosidades envolvendo essas pessoas, esse livro e… o apito vermelho. Quando percebo, estou sozinho. Levi se foi.
VOCABULÁRIO --
* Jio - rapaz
* Inio a pokio - expressão pejorativa: um invasor; mentiroso; falso
* Ma jijio - irmão (zinho)
* Walia - guerreiro
*Diané Wu - expressão de respeito: com licença
* Lienôe o´lawa - Livro sagrado, assim como a bíblia ou alcorão
Muito bom eu não leio muito e li muito rápido, ótima história
ResponderExcluirCOMO QUE ACABOU EU PRECISO DE MAIS POSTA MAIS EU QUEOR MAIS AAAAAAA
ResponderExcluirVou postar uma segunda parte hoje
ExcluirOLOKO, achei muito interessante! Vou ler o outro post assim que possível, fiquei curioso
ResponderExcluirComo que eu não li isso antes ????
ResponderExcluirTe pergunto a mesma coisa! Bora ler!
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